terça-feira, 20 de novembro de 2012

Liberdade, liberdade, abra asas sobre nós... e que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz...





PLANTÃO JUDICIÁRIO NOTURNO
DECISÃO
Trata-se de requerimento de liberdade provisória em favor de J. L. R. DA S., indiciado por roubo impróprio tentado, cuja subtração seria de alguns pedaços de carne bovina. A suposta violência resultou do fato de ter tentado se desvencilhar do segurança quando foi segurado, quando então tentou dar socos neste.
O Ministério Público opinou pelo indeferimento ao argumento de que estão presentes os indícios de autoria e que a ordem pública poderia estar ameaçada com o retorno do indiciado a novos crimes inclusive com violência já que tentou dar socos no segurança do estabelecimento.  
FUNDAMENTAÇÃO
Prólogo
Ver a foto na FAC deste rapaz que mal completou 18 anos e já se entregou à subtração e ler a descrição dos fatos no APF me remonta  uma imagem mental que reconduz à poesia de Castro Alves:
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... 

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! 

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!... 

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão. 

Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . 

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. . 

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão? 

É uma imagem dantesca de um afrodescendente com pedaços de carne bovina tentando se desvencilhar do segurança e fugir com sua caça, sabe Deus, para alimentar a quem e a quantos. Quem são estes que arriscam sua liberdade, desesperadamente, por um pedaço de carne bovina? Senhor Deus dos desgraçados, me diz vós senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade, tanto horror perante os céus...? 
É mais um filho do deserto, onde a terra esposava luz e hoje é celeiro de horrores. Ontem, guerreava com tigres mosqueados, hoje, a caça urbana pela sobrevivência, são guerreiros que subtraem carne que não correm pelos campos, mas são eletronicamente vigiados.
Suporte Jurídico
Nosso sistema constitucional optou claramente por fazer da liberdade a regra e da prisão processual, a exceção. Assim, prescreveu, em seu art. 5º, o due process of law como pressuposto da perda da liberdade. Acentuou que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem judicial, e que ninguém será mantido preso quando for possível a liberdade provisória, com ou sem fiança, determinando, ainda, que a prisão ilegal seja relaxada.
Andou bem o constituinte a fim de evitar os grandes males que a prisão processual pode trazer, males estes que já eram alvo das preocupações de Carnelutti, ao afirmar que:
 en la práctica tales inconvenientes son de una gravedad excepcional; baste decir que no dejan de ser frecuentes los casos de absolución de imputados, que son dejados en custodia, (...) lo que importa es reducir al mínimo el riesgo de injusticia, que la custodia preventiva lleva consigo”(na prática tais inconvenientes são de uma gravidade excepcional, basta dizer que deixam de ser freqüentes os casos de absolvição de acusados que são colocados em custódia, o que importa é reduzir o mínimo o risco de injustiça que a custódia preventiva traz consigo)[1].
Desta forma, a prisão processual só pode ser concebida como medida excepcional de natureza cautelar, instrumental, ligada à estreita necessidade de preservar o processo e sua efetividade[2]. Apenas neste sentido é possível a convivência harmônica da prisão processual com o princípio constitucional da presunção de inocência, que atua como limite teleológico da prisão cautelar[3].
Para além da questão da excepcionalidade da medida, o critério de proporcionalidade também deve ser observado. A toda evidência não faz sentido decretar ou manter uma prisão provisória quando provavelmente não será a prisão pena a medida definitiva a ser aplicada em razão de mecanismos de despenalização como a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos ou penas pecuniárias (art. 44 do CP), além da suspensão do processo (art. 89 da Lei 9099/95) ou da suspensão da pena (art. 77 do CP).
Suporte Fático
O argumento do Parquet não pode sustentar a prisão. Não se pode manter uma prisão, na atual ordem constitucional, partindo de uma “dedução” de que o indiciado possa voltar a delinqüir e com violência.
As testemunhas dos fatos objetos do flagrante são policiais e seguranças, de forma que, não há qualquer risco à instrução, tampouco a ordem pública. Aliás, a expressão ordem pública para além de ser um conceito vago e indeterminado, sua origem tem raízes nazi-fascistas abrigada no CPP por influência do código Rocco da Itália.
A prisão cautelar só é compatível com o princípio da presunção de inocência quando tem por objetivo a preservação do processo, pois do contrário transforma-se em antecipação de pena. O que tutela, ou deveria tutelar, a ordem pública (prevenção geral e específica) é a pena. Usar a prisão processual para garantir a ordem pública é antecipar os efeitos da pena, o que é inconstitucional.
Por fim, a consulta sobre antecedentes feita pelo cartório operou-se na base de dados geradora da FAC, portanto, constata que o indiciado não ostenta antecedentes criminais a não ser um furto tentado, ou seja, crime de baixa gravidade.
O art. 312 do CPP não autoriza a prisão processual com base em axiomas, deduções ou qualquer outro mecanismo de integração fática. A jurisprudência do STF tem sido primorosa em consagrar a presunção de inocência.
Em lapidar voto (HC 93056) o Ministro Celso de Mello destaca que o discurso autoritário que prestigia a ideologia da lei e ordem não pode se sobrepor as garantias fundamentais da Constituição. Embora longa, vale transcrever a ementa:
A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada ou mantida em situações de absoluta necessidade. A prisão cautelar, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade ou manutenção da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A MANUTENÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão cautelar não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE MANTER-SE A PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE. - Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão cautelar. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. - Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. No sistema jurídico brasileiro, não se admite, por evidente incompatibilidade com o texto da Constituição, presunção de culpa em sede processual penal. Inexiste, em conseqüência, no modelo que consagra o processo penal democrático, a possibilidade jurídico-constitucional de culpa por mera suspeita ou por simples presunção. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. Precedentes. (STF, HC 93056)
Por fim, a dinâmica do fato não demonstra ter havido violência ao ponto de inviabilizar a concessão da liberdade, sendo que a gravidade abstrata do delito não pode justificar a prisão:
STJ - HC 113871 / RJ
HABEAS CORPUS
2008/0183739-6
HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. GRAVIDADE ABSTRATA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS.  ORDEM CONCEDIDA.
1 - A prisão cautelar, assim entendida aquela que antecede a condenação transitada em julgado, só pode ser imposta se evidenciada, com explícita fundamentação, a necessidade da rigorosa providência.
2 - Sendo decretada a prisão preventiva com base na gravidade abstrata do delito, ao único fundamento de que o paciente integra "uma grande e complexa organização criminosa", dissociado de elementos concretos e individualizadores da sua conduta, fica evidenciado o constrangimento ilegal.
Isto posto, DEFIRO A LIBERDADE PROVISÓRIA à J. L. R. DA S. Expeça-se alvará de soltura e lavre-se o termo. Dê ciência ao Promotor de Justiça de plantão.  
Rio de Janeiro, 19  de setembro de 2009.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Plantão



[1] CARNELUTTI, Francesco. Principios Del Proceso Penal. Tradução de Santiago Sentis Melendo, Ediciones Juridicas Europa-America, Buenos Aires. 1971, vol. II,  p. 188-190.
[2] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 70.
[3] VILELA, Alexandra. Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 113.