terça-feira, 4 de novembro de 2014

Afranio Silva Jardim: um homem que resiste as pretensões (tentações) de seu tempo!


ÁCIDAS REFLEXÕES
             Ainda gosto de viver, embora pela vida já não seja mais um apaixonado como outrora. Não sou melhor ou pior do que a média das pessoas. Entretanto, aqui me manifesto "imunizado" pelo maravilhoso ato de escrever e tomado de emoção. Minha querida filha Eliete morreu prematuramente há  menos de três meses.
           Importante ressaltar que toda esta emoção não poderá justificar ou me isentar de censura pelo que irei dizer, pois tal emoção apenas me motivou a desabafar o que, de há muito, tenho pensado e racionalizado.
          Sempre demonstrei não gostar deste tipo de sociedade em que  vivo. Cada vez mais me sinto fora de sintonia com a realidade que me cerca. Nunca me agradou viver em um tipo de sociedade onde seus valores fundantes são a competição, a concorrência, o lucro e a ambição. As pessoas se mostram cada vez mais egoístas e individualistas. Certo que tudo já foi pior, bastando constatar que  fomos o último país a abolir a escravidão. De qualquer sorte, quero reiterar que este modelo de sociedade me deixa amargurado. Sou mesmo um inadaptado.
           Não consigo permanecer indiferente ao ver pessoas freneticamente e, a todo momento, dedilhando seus celulares (que pouco têm de telefone nos dias de hoje ,,,). Andam nas ruas como verdadeiros viciados nesta tecnologia. Fico até amedrontado quando vejo, em restaurantes, famílias inteiras sentadas sem se falarem, mas todos dedilhando seus celulares compulsivamente. Nos aeroportos, a situação é ainda mais drástica, pois aparecem os executivos e homens de negócios em geral com seus computadores portáteis, trabalhando incessantemente ... Nunca se teve tantas formas de comunicação, mas também as pessoas modernas nunca estiveram tão sós... Precisam mandar suas fotos para os outros para sentirem que têm visibilidade ... O frenesi é total.
          Ressalvo que nada me move contra a tecnologia e os avanços da modernidade. Minha estranheza é com o seu mau uso ou abuso ... As chamadas redes sociais estão infantilizando as pessoas, que passam o dia mandado recadinhos jocosos e fotos de seus corpos para a platéia ... Com as raras exceções de sempre, quase nada é sério e reflexivo. Galhofa o tempo inteiro. Estamos desaprendendo de escrever. Não se tem mais tempo para ler, senão aquilo que se transmite por estas redes sociais e pelas cínicas Revistas Veja e Isto É, que imitam o modelo americano: muitos anúncios, uma matéria de capa totalmente voltada para combater os governos que têm alguma preocupação com a justiça social e algumas pequenas colunas redigidas por jornalistas parciais, derramando fel em pílulas. Cultura é coisa do passado ... Cultura geral chega a ser utopia nos dias de hoje. Voltando aos "celulares", já percebo pessoas que ficam com eles nas mãos até andando dentro de suas residências, a todo instante olhando suas telas.
          A música já está perdendo o disco físico e já se fala que as nossas bibliotecas serão substituídas por pen-drives. Tudo se torna virtual, precário e efêmero. Temos que produzir e consumir cada vez mais e cada vez mais rápido ...
          Sobre a nossa televisão fica até difícil  fazer alguma crítica sem cair no maçante lugar comum. Uma alienação total, fazendo com que as pessoas vivam num mundo maravilhoso e irreal. Os nossos heróis são aqueles que a Rede Globo escolhe ... Tomar consciência da realidade é coisa subversiva. Temos que viver em um mundo de fantasias, malgrado a luta dura e diária da maioria da nossa população. Programas de debates e conscientização são raríssimos, tarde da noite e repletos de jornalistas e intelectuais liberais, que adoram ficar invocando o "bolivarianismo" para desqualificar qualquer preocupação com a nossa injustiça social. São verdadeiros "filhinhos de papai" egoístas e ou "vendidos" ao sistema, o qual se utiliza das grandes mídias para enganar cada vez mais a população.
           Para atender às leis do mercado, tudo precisa ser descartável e passageiro. A própria moda, fenômeno social natural, passou a ser manipulada pelos interesses comerciais como nunca na história. Jovens, de forma acrítica, incentivados pela mídia interessada, imitam os chamados “famosos” e usam e se portam ridiculamente  como eles. Compram roupas, tênis e brinquedos caros só porque têm nome ou retratos destes “heróis” riquinhos ... Pais incentivam estes comportamentos ingênuos. Parece que o grande Chico Buarque teria dito, se referindo a influência das redes sociais e mídia em geral, que ele temia que o Brasil se tornasse uma sociedade de idiotas. Se disse mesmo eu não sei,  mas tenho este temor também. Repito: as pessoas estão sendo infantilizadas.
          Não posso deixar de virar a minha "metralhadora giratória" para este fanatismo religioso que assola grande parte do planeta. Ainda matamos nossos irmãos em nome de Deus. Ainda perseguimos e discriminamos nossos irmãos em nome de Cristo ou Maomé e tantas outras santidades que ainda existem em vários povos que estão espalhados pelo mundo. As religiões historicamente têm dificultado o nosso desenvolvimento social e científico, baseadas em dogmas e regras escritas há milênios atrás.
           Por outro lado, elas têm servido ao poder político e econômico para domesticar as massas, prometendo-lhes um pequeno espaço lá no céu, desde que não questionem nada ... Aqui no sudeste, os fundamentalistas evangélicos e os carismáticos católicos estão se tornando insuportáveis... A mistura da religião com a política está fazendo surgir uma verdadeira intolerância entre aqueles que se dizem irmãos, porque filhos do mesmo Deus ... O que falar da exploração econômica que algumas religiões submetem seus adeptos? Tiram dinheiro dos pobres e das pessoas com menos instrução. Algumas igrejas viram negócios altamente rentáveis. Sangria da economia popular.
           Também não quero deixar incólume o nosso sistema judiciário, já que toda a minha vida esteve com ele relacionada. Hoje tudo não passa de um "faz de conta". Ministros e desembargadores fingem que redigiram seus votos, na verdade, elaborados por seus assessores ... Novamente temos aqui que reconhecer a existência de algumas importantes exceções. Continuando, juízes assinam sentenças redigidas pelos seus secretários. Membros do Ministério Público e da Defensoria Pública também se utilizam de assessores e estagiários para fazerem suas peças. Tudo vem assinado como se a autoria fosse dos titulares dos respectivos cargos públicos. Fingem que redigiram as peças processuais e nós fingimos que não sabemos destas  simulações... A vaidade de alguns titulares de tribunais superiores ficou ainda mais aguçada pelas transmissões da televisão. Quando o processo tem repercussão na opinião pública, a leitura dos votos leva horas (estes votos talvez eles mesmos tenham redigido), não importando se o resultado do julgamento já esteja alcançado. O importante é mostrar trabalho e cultura (por vezes, superficial...). Quando não aparecem advogados para usar da tribuna e o processo não tem repercussão na opinião pública, os julgamentos são realizados "por listas", vale dizer, o relator diz qual é o seu voto e todos acompanham sem saber do que se trata, o que os advogados das partes sustentaram em suas razões. Julgamentos deste tipo duram cerca de quinze segundos ... Por fim, casos há em que o relator pede vista do processo quando a maioria já está formada, evitando o desfecho do julgamento. Anos se passam e o tal relator não traz o seu voto, nada obstante o prazo regimental expresso... Algum motivo deve tentar justificar este comportamento irregular ...
          A grande mídia está alcançando um dos seus muitos objetivos perversos: está despolitizando a população. O jovem acredita que todos os políticos são corruptos e dizem ter ódio da política. Não querem saber quem são os corruptores. Não investigam se seus pais pagam o imposto de renda que efetivamente devem. A classe empresarial corrompe as instituições públicas e sonega mais de setenta por cento dos impostos devidos, mas fica incólume perante os olhos da população. Os grandes jornais, rádios e sistemas de televisão fazem parte desta elite hipócrita e egoísta e não vão contrariar seus interesses. População despolitizada é população manipulada, submissa ou "rebelde sem causa". Estamos nos acostumando a não ficar indignados com a pobreza ou miséria alheias ... Cuida-se de um verdadeiro "darwinismo social". Eu me importo é comigo, os outros, são os outros ... A alienação política é cada vez maior ... A quem serve tudo isso?
           Temos de gostar do tipo de música que as grandes gravadoras julgam serem aptas para aumentar seus lucros. Nas rádios e programas de televisão  aparecem preferencialmente cantores e compositores do nível mais baixo possível. Tudo voltado para o lado comercial. Isto vale, de certa forma, para as demais formas de manifestação cultural, tudo regido pelas famosas leis do mercado. Aliás, o tal de mercado rege quase tudo e a mídia se refere a ele como se fosse uma pessoa boa e generosa  ..
           Tormentosa é a celeridade ou rapidez que os dias atuais a tudo imprime. Não há mais tempo. Não temos mais tempo para ler obras relevantes, não temos mais tempo para refletir sobre a nossa vida e a sociedade em que vivemos. Não podemos ter mais tempo, porque o tempo é perigoso para o sistema social moderno. Não temos tempo para visitar e conversar com nossos amigos. Não temos tempo para fazer amigos. As relações humanas que hoje são travadas já surgem com a marca da precariedade e são efêmeras, superficiais. Não temos tempo para questionar sobre uma  tal de felicidade construída pelo ato de comprar e consumir compulsivamente. Pensar hoje é mais subversivo do que nunca. Quantos dias o homem das cidades passam sem um olhar atento e deslumbrante para o céu, para o cosmo, para o universo? ... Pobre ser humano de século XXI, rico em iphones e pobre em sentimentos.
           Termino mais ou menos como comecei: ainda gosto da vida, mas a morte que se avizinha é uma demonstração da "sabedoria" da natureza: este novo mundo já não é o meu mundo ... 

          Rio de Janeiro, primavera de 2014



                                 Afranio  Silva  Jardim