Nos estudos sobre controle de
constitucionalidade, muita discussão já se travou em relação aos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade. Há tempos a questão girava basicamente em
torno de a declaração importar nulidade (efeitos ex tunc) ou
anulabilidade (efeitos ex nunc).
Atualmente, a doutrina
constitucional se ocupa com diversas técnicas, como a interpretação conforme, a
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, o “apelo ao legislador” etc.
No Brasil, houve um avanço
operacional a partir da Lei 9.868/1999, que na trilha do ordenamento português
e alemão, adotou a possibilidade de o STF temperar os efeitos da decisão por
meio da chamada “modulação dos efeitos temporais”.(1)
Mas, em matéria penal não se tem
dado muita atenção ao resultado do controle concentrado de constitucionalidade
feito pelo STF, o que na prática tem gerado muita confusão relativamente às
questões intertemporais.
Na ADI 4.424, o STF fixou
interpretação conforme à Constituição para o art. 16 da 11.340/2006, dispondo
que ação penal mesmo na hipótese de lesão corporal leve, no âmbito da
violência doméstica, é pública incondicionada.(2) Tal regência versa sobre
norma híbrida, pois, apesar de dispor sobre o exercício da ação penal, amplia o
direito de punir do Estado, afastando a possibilidade de extinção da
punibilidade pela decadência ou retratação da representação. Por tal razão, o
tema deve ser visto à luz do princípio da irretroatividade da lei penal
prejudicial ao réu (art. 5.º, XL, da CF/1988).
Da natureza dos controles
concentrado e abstrato
Ao analisar os efeitos das
decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, não podemos
perder de vista a natureza de tal atividade para que possamos perceber os
princípios regentes.
Ao controle concentrado
associa-se o controle abstrato, ou seja, não se está diante de um caso
concreto, não há disputa, a discussão é sobre a lei em si, tem-se um processo
objetivo.(3)
O controle concentrado deita
raízes nas ideias de Hans Kelsen, que o concebeu para a Áustria (1920).
Diversamente do judicial review americano, o controle concentrado não é
propriamente uma fiscalização judicial, mas sim uma função constitucional
autônoma, que pode ser definida como função legislativa negativa.(4)
No controle difuso correspondente
ao judicial review, os juízes exercem um poder de fiscalização (Prüfungsrecht)
e controlam a validade da norma na solução do caso concreto com efeito inter
partes. Já o controle concentrado possui eficácia erga omnes,
correspondendo a uma competência de rejeição (Verwerfungskompetenz),
pois o órgão se afirma como defensor da Constituição(5) “legislando”
negativamente,(6) eliminando do ordenamento jurídico(7) a norma
inconstitucional.(8)
O STF, ao declarar a inconstitucionalidade
da lei, exerce função constitucional autônoma (política e atípica) de guardião
da Constituição, legislando. A natureza desta função não é jurisdicional, mas
legislativa negativa.
Da submissão da decisão ao art.
5.o, XL
A par da natureza da atividade do
STF no controle abstrato de constitucionalidade, podemos chegar à conclusão de
que a decisão do STF ao declarar a inconstitucionalidade está submetida ao
princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial ao réu (irretroatividade
da lex severior) e retroatividade da lei favorável (retroatividade da lex
mitior), art. 5.º, XL, da CF.
Não temos dúvida de que em um
Estado Democrático de Direito, todos, inclusive o STF, devem observância e
submissão à Constituição. Assim, se o legislador positivo está submetido ao
inc. XL do art. 5.º da CF/1988, com maior razão o legislador negativo, que
exerce função atípica, também o estará.
O princípio da segurança
jurídica, na forma aplicada em matéria penal, não permite que alguém que paute
sua conduta em um ato do Estado, que nasce com presunção de constitucionalidade
como as leis, seja surpreendido por uma decisão do STF que criminaliza ou da
tratamento mais gravoso a fato que a lei (que se presume constitucional) não
fazia.
Da modulação dos efeitos temporais
De modo geral, adotou-se a
concepção de que a norma inconstitucional é nula, logo, sua declaração possui
efeitos retroativos (ex tunc). Esta concepção prevalente nos Estados
Unidos se alargou com algumas exceções para inúmeros países que adotam o controle
judicial de constitucionalidade, como Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e
também o Brasil. Apenas na Áustria há fidelidade à concepção kelseniana de que
a lei inconstitucional é anulável, ou seja, a decisão é desconstitutiva, com
efeitos prospectivos (ex nunc).(9)
Já se assinala que a chamada
“teoria das nulidades” se apresenta como um dos problemas mais complicados da
disciplina processual.(10) Ousamos dizer que é, na verdade, um dos temas mais
insolúveis da Teoria do Direito. Basta notar a fragilidade da premissa de que a
“sanção” de nulidade tem eficácia retroativa, apagando todos os efeitos já
produzidos anteriormente a sua declaração. Ora, o casamento nulo produz efeitos
para o cônjuge de boa-fé e apara a prole (art. 1.561 do CC/2002). A sentença penal
condenatória nula, no júri, produz o efeito de limitar futura condenação em
razão da vedação da reformatio in pejus indireta. Também no tema de
controle de constitucionalidade a teoria das nulidades mostra-se insuficiente.
Na Alemanha, um dos debates
inaugurais, que demonstra a necessidade de rever a dicotomia de paradigma
nulidade-anulabilidade, se deu em relação ao problema da “exclusão de benefício
incompatível com o princípio da igualdade”. Tratava-se de uma lei que
beneficiava um grupo (reajuste ou vantagens), porém excluía o benefício,
expressa ou implicitamente, de outros, em igual situação. No caso, não seria
justo declarar a nulidade do benefício da categoria contemplada, mas sim,
estendê-lo aos demais. Daí se iniciou a ideia de que a declaração de
inconstitucionalidade não poderia necessariamente importar nulidade.(11)
A doutrina constitucional
atualmente ocupa-se do tema da modulação dos efeitos temporais das decisões em
controle de constitucionalidade por via abstrata. Os mecanismos de modulação
são importantes para temperar o rigor e a insuficiência da antiga dicotomia
nulidade-anulabilidade. A superação deste paradigma tem sido paulatinamente
construída e hoje já podemos falar de avanços, como a interpretação conforme a
Constituição, a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, a
inconstitucionalidade sem declaração de nulidade e o “apelo ao legislador”.
Antes da Lei 9.868/1999, o STF
era um dos poucos tribunais com jurisdição constitucional a não usar, de modo
expresso, da limitação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Não
se nega o princípio geral da nulidade da lei inconstitucional, mas afasta-se
esse princípio sempre que se revelar mais gravoso ao sistema jurídico,
traduzindo-se em ameaça à segurança jurídica, que também tem status
constitucional. Com isso, muitas vezes a declaração de inconstitucionalidade
não importará necessariamente eliminação direta e imediata da lei do
ordenamento jurídico, deixando-se de lado a eficácia cassatória com efeito
retroativo para assumir efeitos apenas prospectivos.(12)
Entre nós, a Lei 9.868/1999
dispõe: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços
de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só
tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado”.
Com décadas de atraso em
comparação a outras democracias, nosso ordenamento já está dotado de
instrumento que permite o temperamento dos efeitos temporais nas declarações de
inconstitucionalidade, impende, porém, maior zelo e atenção ao tema em matéria
penal, merecendo destaque a possibilidade de declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade quando a norma ou interpretação
a ser excluída da ordem jurídica forem mais benéficas ao réu, ou seja, a
decisão terá efeito erga omnes, porém, ex nunc.
A ADI 4.424
Até o momento da construção do
presente ensaio não foram lavrados os votos que construíram a decisão na ADI
4.424, pelo que não estamos certos se o tema foi enfrentado por ocasião do
julgamento. Contamos apenas com a decisão que assim dispõe:
“ADI 4.424: O Tribunal, por maioria
e nos termos do voto do relator, julgou procedente a ação direta para, dando
interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei n.
11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime
de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no
ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso”.
A decisão fixa como pública e
incondicionada a natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal leve no
âmbito da violência doméstica. Sem discutir o desacerto da decisão, que para
nós representa um retrocesso por diminuir a autonomia da mulher perante o
Estado – e provocará uma onda de processos que redundarão em absolvições diante
do testemunho das vítimas reconciliadas que não foram ouvidas sobre a
persecução penal(13) – o fato é que não há como conferir outro efeito à decisão
do STF, senão o prospectivo (ex nunc).
A decisão do STF não poderá
atingir fatos ocorridos antes de seu trânsito em julgado. A norma tem presunção
de constitucionalidade e as pessoas se pautam em consonância com esta e, ainda,
tendo a seu lado jurisprudência consolidada no STJ,(14) no sentido de que a
lesão corporal exige representação. Assim, não podem ser surpreendidas com o
resultado de uma decisão em controle abstrato, cuja natureza é legislativa
negativa, com resultado prejudicial ao indivíduo na medida em que fortalece o
direito de punir.
A declaração de
inconstitucionalidade, na hipótese, não pode importar nulidade da interpretação
fixada anteriormente, devendo se aplicar, neste caso, a chamada
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, ou seja, a decisão tem efeito
prospectivo (ex nunc).
Na doutrina,(15) a regra da
nulidade somente pode ser afastada quando se demonstrar que a tradicional
técnica de nulidade, com efeitos retroativos (ex tunc), envolverá
sacrifício da segurança jurídica ou outro valor constitucionalmente
materializável. É o que ocorre no caso, pois admitir a retroatividade da
decisão do STF seria rasgar o inc. XL do art. 5.º da CF/1988.
Antes mesmo do trânsito em
julgado da decisão as varas de violência doméstica, já estão sendo conclamadas
a dirimirem reflexos da decisão do STF. São promotores que, mesmo diante de
retratação de representação anterior à decisão do STF, estão oferecendo
denúncia. Delegados remetendo inquéritos sobre fatos anteriores a decisão sem
que haja representação da vítima, promotores requerendo desarquivamento de
inquérito arquivado por falta de representação, vítimas e acusados perplexos
diante de persecuções penais mesmo após seus atos de disposição da persecução e
de inequívocos atos de reconciliação etc.
Bom seria que o próprio STF
fixasse efeito prospectivo a sua decisão. Não o fazendo, o juiz não terá outro
caminho a não ser interpretar a decisão no sentido de que seus efeitos são
prospectivos por força do art. 5.º, XL, da CF/1988. A decisão do STF, como ato
normativo, abstrato, cuja natureza é legislativa, deve ser interpretada pelo
juiz, que deverá suprir suas omissões com os princípios do direito, como no
caso, o princípio da irretroatividade da lei prejudicial ao acusado.
Os efeitos da ADC 19
Diferentemente do que ocorre na
ação direta de inconstitucionalidade, a declaração de constitucionalidade não
produz uma mudança qualitativa na situação jurídica. O STF apenas afirma
expressamente a sua constitucionalidade sem provocar qualquer efeito sobre a
validade da norma. A lei vige após a decisão tão qual vigorava antes. Nada
impede que, posteriormente, o legislador revogue ou altere a lei declarada
constitucional.(16)
Assim, quanto ao resultado da ADC
19, a declaração de que os arts. 1.º, 33 e 41 são constitucionais servem para
afastar as controvérsias existentes sobre o tema.(17)
Também sem enfrentar o desacerto
da decisão, uma nota deve ser feita em relação à declaração de
constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha. Não é possível pensar que
a Lei 9.099/1995 nunca será aplicada no âmbito da violência doméstica. O art.
41 se refere expressamente aos “crimes”, o que não abrange as contravenções
penais, não sendo possível aplicar analogicamente a vedação que se faz “aos
crimes” para alcançar também as contravenções penais, pois se trata de analogia
prejudicial ao réu, vedada pelo ordenamento constitucional e legal.
Desta forma, às contravenções
penais no âmbito da violência doméstica são aplicáveis as normas da Lei
9.099/1995, não alcançadas pelo art. 41 da Lei 11.340/2006, tampouco atingidas
pela ADC 19 do STF.
Conclusão
Considerando a natureza jurídica
da atividade do STF no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade
(legislativa negativa), bem como a norma inserta no inc. XL do art. 5.º da
CF/1988 (irretroatividade da lei penal prejudicial), na hipótese de o STF não
delibar sobre o efeito prospectivo da decisão, a ação penal nos crimes de lesão
corporal leve só será pública incondicionada relativamente aos fatos ocorridos
após o trânsito em julgado da decisão da ADI 4.424 do STF.
Apesar da ADC 19 e do que dispõe
o art. 41 da Lei 11.340/2006, às contravenções penais, no âmbito da violência
doméstica familiar, são aplicáveis as normas da Lei 9.099/1995.
NOTAS
(1)
Barroso, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 232-233.
(2) STF,
ADI 4.424: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, julgou
procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos arts. 12,
inciso I, e 16, ambos da Lei 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da
ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta,
praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor
Ministro Cezar Peluso (Presidente)”.
(3)
Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 900.
(4) Idem,
p. 898-899.
(5) Idem,
p. 903.
(6)
Também reconhecendo ao STF a função legislativa negativa: Barroso, Luis
Roberto. Op. cit., p. 177.
(7)
Canotilho, J. J. Gomes. Op. cit., p. 903.
(8) Sobre
a “função de defesa”, ou seja, de eliminar do ordenamento jurídico a norma inconstitucional,
própria do controle abstrato, vale conferir: Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 56.
(9)
Barroso, Luis Roberto. Op. cit., p. 39-40.
(10)
Ramalho Junior, Almir Duclerc. Nulidade no processo penal:do tradicional
“inferno” teórico a uma racionalidade garantista. In: Moreira, Rômulo
(org.). Leituras complementares de processo penal. Salvador:JusPodivm,
2008. p. 77.
(11)
Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 270.
(12)
Idem, p. 332-333.
(13) Não
conseguimos perceber em que medida e com base em que o STF concluiu que “o
art. 16 esvazia a proteção constitucional dada à mulher”. Poderíamos
questionar em que medida referido dispositivo não fortalece à autonomia da
mulher, bem como a importância da família, também protegida
constitucionalmente.
(14) STJ,
HC 154940 e REsp. 1051314.
(15)
Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 395.
(16) Idem, p. 359-360.
(17) A
nosso sentir, no caso vertente, irá ocorrer apenas o acirramento das
controvérsias.
André
Luiz Nicolitt
Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa-Lisboa.
Mestre em Direito pela UERJ – Professor do IBMEC-Rio
Juiz de Direito - TJRJ.
Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa-Lisboa.
Mestre em Direito pela UERJ – Professor do IBMEC-Rio
Juiz de Direito - TJRJ.
Texto publicado pela primeira vez no Boletim do Ibccrim.
Como citar:
NICOLITT, André Luiz. Declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade em matéria penal: reflexão a
partir da ADI 4.424 e da ADC 19 – STF e as novas controvérsias sobre a Lei
Maria da Penha. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, n.
234, p. 08-09, mai., 2012.
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