terça-feira, 4 de dezembro de 2012

I Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos

Monografia Premiada
O juiz como guardião dos direitos humanos:
Três casos de contenção do abuso policial e de afirmação de direitos fundamentais com um olhar sobre o Direito ao Silêncio
Autor: André Nicolitt

Compartilho a alegria de ter apresentado monografia que disputou e venceu o I Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos.
Foi comovente receber o Prêmio, principalmente  porque na categoria projetos, o vencedor foi o "Projeto Grão" de autoria da grande juíza Thelma Fraga que, com sua recente partida nos deixou saudades, mas também esperança. 
Nossa monografia se estruturou da seguinte forma:

a)    Apresentou uma abordagem sobre os direitos humanos, questão central do ensaio, bem como a análise do processo como garantia fundamental no âmbito normativo e como mecanismo de opressão no plano real;
b)    Apresentou a perspectiva da busca da verdade e da persecução penal no âmbito de um Estado Democrático de Direito, centrado nos direitos fundamentais;
c)     Apresentou a crise do Estado Democrático de Direitos através dos três casos considerados como pequenos sintomas desta;
d)    Apresentou o juiz como protagonista na tarefa de efetivação dos direitos fundamentais, na aproximação do ser e do dever ser, como ator que, na expressão de Dworkin, deve levar direitos a sério

Agradeço aos amigos pelas felicitações.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Liberdade, liberdade, abra asas sobre nós... e que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz...





PLANTÃO JUDICIÁRIO NOTURNO
DECISÃO
Trata-se de requerimento de liberdade provisória em favor de J. L. R. DA S., indiciado por roubo impróprio tentado, cuja subtração seria de alguns pedaços de carne bovina. A suposta violência resultou do fato de ter tentado se desvencilhar do segurança quando foi segurado, quando então tentou dar socos neste.
O Ministério Público opinou pelo indeferimento ao argumento de que estão presentes os indícios de autoria e que a ordem pública poderia estar ameaçada com o retorno do indiciado a novos crimes inclusive com violência já que tentou dar socos no segurança do estabelecimento.  
FUNDAMENTAÇÃO
Prólogo
Ver a foto na FAC deste rapaz que mal completou 18 anos e já se entregou à subtração e ler a descrição dos fatos no APF me remonta  uma imagem mental que reconduz à poesia de Castro Alves:
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... 

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! 

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!... 

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão. 

Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . 

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. . 

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão? 

É uma imagem dantesca de um afrodescendente com pedaços de carne bovina tentando se desvencilhar do segurança e fugir com sua caça, sabe Deus, para alimentar a quem e a quantos. Quem são estes que arriscam sua liberdade, desesperadamente, por um pedaço de carne bovina? Senhor Deus dos desgraçados, me diz vós senhor Deus, se eu deliro ou se é verdade, tanto horror perante os céus...? 
É mais um filho do deserto, onde a terra esposava luz e hoje é celeiro de horrores. Ontem, guerreava com tigres mosqueados, hoje, a caça urbana pela sobrevivência, são guerreiros que subtraem carne que não correm pelos campos, mas são eletronicamente vigiados.
Suporte Jurídico
Nosso sistema constitucional optou claramente por fazer da liberdade a regra e da prisão processual, a exceção. Assim, prescreveu, em seu art. 5º, o due process of law como pressuposto da perda da liberdade. Acentuou que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem judicial, e que ninguém será mantido preso quando for possível a liberdade provisória, com ou sem fiança, determinando, ainda, que a prisão ilegal seja relaxada.
Andou bem o constituinte a fim de evitar os grandes males que a prisão processual pode trazer, males estes que já eram alvo das preocupações de Carnelutti, ao afirmar que:
 en la práctica tales inconvenientes son de una gravedad excepcional; baste decir que no dejan de ser frecuentes los casos de absolución de imputados, que son dejados en custodia, (...) lo que importa es reducir al mínimo el riesgo de injusticia, que la custodia preventiva lleva consigo”(na prática tais inconvenientes são de uma gravidade excepcional, basta dizer que deixam de ser freqüentes os casos de absolvição de acusados que são colocados em custódia, o que importa é reduzir o mínimo o risco de injustiça que a custódia preventiva traz consigo)[1].
Desta forma, a prisão processual só pode ser concebida como medida excepcional de natureza cautelar, instrumental, ligada à estreita necessidade de preservar o processo e sua efetividade[2]. Apenas neste sentido é possível a convivência harmônica da prisão processual com o princípio constitucional da presunção de inocência, que atua como limite teleológico da prisão cautelar[3].
Para além da questão da excepcionalidade da medida, o critério de proporcionalidade também deve ser observado. A toda evidência não faz sentido decretar ou manter uma prisão provisória quando provavelmente não será a prisão pena a medida definitiva a ser aplicada em razão de mecanismos de despenalização como a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos ou penas pecuniárias (art. 44 do CP), além da suspensão do processo (art. 89 da Lei 9099/95) ou da suspensão da pena (art. 77 do CP).
Suporte Fático
O argumento do Parquet não pode sustentar a prisão. Não se pode manter uma prisão, na atual ordem constitucional, partindo de uma “dedução” de que o indiciado possa voltar a delinqüir e com violência.
As testemunhas dos fatos objetos do flagrante são policiais e seguranças, de forma que, não há qualquer risco à instrução, tampouco a ordem pública. Aliás, a expressão ordem pública para além de ser um conceito vago e indeterminado, sua origem tem raízes nazi-fascistas abrigada no CPP por influência do código Rocco da Itália.
A prisão cautelar só é compatível com o princípio da presunção de inocência quando tem por objetivo a preservação do processo, pois do contrário transforma-se em antecipação de pena. O que tutela, ou deveria tutelar, a ordem pública (prevenção geral e específica) é a pena. Usar a prisão processual para garantir a ordem pública é antecipar os efeitos da pena, o que é inconstitucional.
Por fim, a consulta sobre antecedentes feita pelo cartório operou-se na base de dados geradora da FAC, portanto, constata que o indiciado não ostenta antecedentes criminais a não ser um furto tentado, ou seja, crime de baixa gravidade.
O art. 312 do CPP não autoriza a prisão processual com base em axiomas, deduções ou qualquer outro mecanismo de integração fática. A jurisprudência do STF tem sido primorosa em consagrar a presunção de inocência.
Em lapidar voto (HC 93056) o Ministro Celso de Mello destaca que o discurso autoritário que prestigia a ideologia da lei e ordem não pode se sobrepor as garantias fundamentais da Constituição. Embora longa, vale transcrever a ementa:
A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada ou mantida em situações de absoluta necessidade. A prisão cautelar, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade ou manutenção da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A MANUTENÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão cautelar não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE MANTER-SE A PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE. - Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão cautelar. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. - Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. No sistema jurídico brasileiro, não se admite, por evidente incompatibilidade com o texto da Constituição, presunção de culpa em sede processual penal. Inexiste, em conseqüência, no modelo que consagra o processo penal democrático, a possibilidade jurídico-constitucional de culpa por mera suspeita ou por simples presunção. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. Precedentes. (STF, HC 93056)
Por fim, a dinâmica do fato não demonstra ter havido violência ao ponto de inviabilizar a concessão da liberdade, sendo que a gravidade abstrata do delito não pode justificar a prisão:
STJ - HC 113871 / RJ
HABEAS CORPUS
2008/0183739-6
HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. GRAVIDADE ABSTRATA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS.  ORDEM CONCEDIDA.
1 - A prisão cautelar, assim entendida aquela que antecede a condenação transitada em julgado, só pode ser imposta se evidenciada, com explícita fundamentação, a necessidade da rigorosa providência.
2 - Sendo decretada a prisão preventiva com base na gravidade abstrata do delito, ao único fundamento de que o paciente integra "uma grande e complexa organização criminosa", dissociado de elementos concretos e individualizadores da sua conduta, fica evidenciado o constrangimento ilegal.
Isto posto, DEFIRO A LIBERDADE PROVISÓRIA à J. L. R. DA S. Expeça-se alvará de soltura e lavre-se o termo. Dê ciência ao Promotor de Justiça de plantão.  
Rio de Janeiro, 19  de setembro de 2009.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Plantão



[1] CARNELUTTI, Francesco. Principios Del Proceso Penal. Tradução de Santiago Sentis Melendo, Ediciones Juridicas Europa-America, Buenos Aires. 1971, vol. II,  p. 188-190.
[2] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 70.
[3] VILELA, Alexandra. Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 113.



terça-feira, 9 de outubro de 2012

Estória de pescador, cheiro de cocaína e direito ao silêncio! É preciso levar direitos a sério (DWORKIN)




TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUIZO DE DIREITO DA SEGUNDA VARA CRIMINAL



SENTENÇA


Processo nº 0168374-45.2012.8.19.0004


RELATÓRIO

Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de A. D. DA S. A. relativamente aos crimes do art. 33 da Lei 11.343/06, art. 180  e 329, ambos do CP.
É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

Dos fatos

Os policiais narram em seus depoimentos que estavam em patrulhamento e notaram o acusado que ficou nervoso quando avistou a polícia. Narram, ainda, que abordaram o acusado e na busca pessoal nada foi encontrado que estivesse relacionado com o crime, mas “estava com a quantia de R$ 40,00, sendo que o declarante ao cheirar o dinheiro notou que exalava um forte cheiro de cocaína”. Então, a guarnição desconfiou do acusado e “inquiriu o mesmo sobre a origem do dinheiro; que o mesmo acabou confessando que vendia drogas e levou a guarnição até a casa dele”. Na residência, o acusado teria mostrado seu quarto onde estava escondido uma carga de droga, consistentes em 11 invólucros, totalizando 11 gramas de cocaína.
Informam, em seguida, que quando saiam da residência, perceberam uma motocicleta coberta por um lençol e que a mesma tinha origem ilícita. Por fim, relatam que ao chegarem à delegacia de polícia, o acusado tentou fugir, correndo, e foi detido pelos policiais (fls. 06/09).
Em sede policial, tendo a autoridade policial cumprido as formalidades legais, informou ao então conduzido, de seus direitos constitucionais, dentre os quais o de permanecer calado e este resolveu permanecer em silêncio e só falar em juízo (fls. 04).
Algo parece incoerente!
Note-se que o policial militar disse que ao cheirar a nota que o acusado portava, sentiu “um forte cheiro de cocaína”. Todavia, a professora Irene Muakad, doutora em medicina forense, professora da USP e professora titular da Mackenzie, ensina que o cocainismo em forma de aspiração é o vício de usar a cocaína em pó, produto em forma de sal, obtido por um processo químico, que chega ao consumidor na forma de cristal ou um pó branco, amargo e sem cheiro. (MUAKAD, Irene Batista. A Cocaína e as suas formas de consumo.[1])
Além desta contradição há outras perplexidades nesta estória. Note-se que um indivíduo que não portava nada de ilícito se assusta com a polícia (será que há motivo para isso?). Em seguida, sem que portasse qualquer coisa de ilícito, resolve falar tudo para os policiais, ou seja, que é traficante e inclusive leva os policiais até sua residência. Todavia, ao chegar na delegacia de polícia, advertido de suas garantias constitucionais e com sua integridade física assegurada, seu comportamento abruptamente se modifica, ou seja, resolve usar de seu direito de permanecer em silêncio (fls. 04).
A conclusão só pode ser uma, os fatos não se deram como narrado pelo policial militar. Cocaína, segundo a professora não tem cheiro. Mas, ainda que tivesse cheiro, a suposta confissão do acusado, mesmo que não fosse motivada por qualquer outro estímulo senão seu desejo de colaborar com a polícia, referida confissão não tem validade, pois não foi precedida de informação quanto ao direito de permanecer em silêncio, pois quando o acusado foi levado à autoridade policial e teve tal garantia assegurada, assim exerceu seu direito constitucional.
É no mínimo curioso indagar porque, na rua, perante policiais militares um indivíduo fala tudo, e diante da autoridade policial, revestido o ato das formalidades necessárias, resolve calar. Diversidade de circunstâncias diversidade de comportamento. 
Da análise jurídica
O Procurador de Justiça e Professor Afrânio Silva Jardim publicou um parecer que se amolda perfeitamente ao presente caso. Logo de início, o culto professor e festejado membro do Parquet já adverte:
Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático, o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados. Entretanto, faz esta opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a penas injustas (Tutela Constitucional do Domicílio e Prisão em Flagrante. In Temas para uma Perspectiva Crítica do Direito. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 12).
 No parecer o referido doutrinador examinava uma decisão de nossa lavra, na qual rejeitamos uma denúncia em razão de policiais militares terem ingressado em uma residência, a noite e sem mandado, e prenderam os residentes por tráfico de entorpecentes. Conclui o processualista, em seu parecer, pelo acerto da rejeição das denúncias em razão da violação a normas constitucionais fundamentais. 
O nosso atual caso em muito se assemelha a estes e exige muita atenção para a efetivação de garantias constitucionais. No caso vertente, não foi respeitado por parte dos policiais militares o direito ao silêncio e houve uma confissão inválida que conduziu os policiais até o interior da residência. Tendo o ingresso ocorrido sem consentimento válido, este é ilícito e tudo que se obteve a partir daí é ilícito por derivação.
O direito ao silêncio, o nemo tenetur se detegere, pode parecer um produto de luxo ou uma sofisticação incompatível com nossa realidade. Mas se pretendemos diminuir o hiato entre o ser e o dever ser, é preciso seguir a advertência de DWORKIN e levar “os direitos a sério”[2].  
Vejamos:
A Constituição é clara ao estabelecer que o domicílio é asilo inviolável da pessoa, nele só se podendo ingressar na hipótese de flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou, durante o dia, com autorização judicial. Fora destas hipóteses taxativas não é possível o ingresso no domicílio, lembrando-se sempre que o conceito deste é amplo (art. 5o, XI, da CRF/1988).
A situação de flagrante significa visibilidade material do delito[3]. Não existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há violação do domicílio e a superveniente apreensão de droga passa a ser ilícita por força dos incisos XI e LVI do art. 5o da Constituição. O mesmo ocorre se o ingresso deu-se com base em consentimento não esclarecido ou viciado.
Não se pode confundir “cometimento de delito” com “estado de flagrância”. Um delito pode estar sendo cometido sem que ninguém perceba (e isso não autoriza ingresso no domicílio), mas para a configuração do flagrante há que se ter percepção pelos sentidos, podendo, inclusive, o delito já ter sido consumado e a percepção ter ocorrido logo após, como nas hipóteses do flagrante impróprio e o presumido.
A adoção de entendimento no sentido contrário conduz a um verdadeiro absurdo, pois se juiz não cumpre a exigência do art. 186 do CPP, a confissão do acusado é inválida. Da mesma forma, se o Delegado de Polícia não cumpre a exigência do art. 6°, V, c/c art. 186 do CPP, a confissão também não serve como justa causa para a ação penal. Não obstante, o policial militar arranca uma confissão do acusado sem tais advertências e esta teria validade? Por óbvio não podemos aceitar tal confissão sob pena de conferirmos ao PM um poder soberano, superior ao do Juiz e do Delegado de Polícia.
Voltando a lição de Afrânio Silva Jardim, temos a definição da situação de flagrante que autoriza o ingresso:
Sempre entendemos que a tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja, só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o consentimento dos moradores. Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado art. 302 não são flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão (JARDIM, Tutela Constitucional, op. cit., p. 13).
Com efeito, nem mesmo se admitíssemos que o “cheiro da nota” fosse um dado verídico, e se o considerássemos como uma situação de flagrante presumido, ainda assim, na precisa lição de Afrânio Silva Jardim, o ingresso não estaria autorizado e a apreensão da droga seria ilícita.  
Note-se que não estamos aqui sustentando tese radical e isolada, pois temos ao nosso socorro não só um dois maiores ícones do Ministério Público, o Professor Afrânio Silva Jardim, como também um dos mais tradicionais processualistas do Brasil como se vê da pena de Tourinho Filho que também abrilhantou o quadro do Ministério Público:
Preciso é, contudo, haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão “flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e... quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente... (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1992, vol. 3, p. 361).
Com efeito, dos mais tradicionais aos mais libertários, ou seja, de Tourinho a Gerado Prado[4], é límpida a ideia da inviolabilidade do domicílio e da irregularidade da prisão que violar este preceito. Pensar o contrário só se justifica em razão de um apelo utilitarista que remonta Bentham, e se traduz na lógica de que “os fins justificam os meios”, o que atenta contra o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República de 1988.
O resultado é que o ingresso ilegal no domicílio contaminou todas as provas do crime, não sobrando nada lícito para formar a justa causa da ação penal. Não só a prova diretamente ilícita é vedada pela Constituição, mas tudo que derivar da ilicitude será considerado imprestável ao processo, é o que ficou definido na experiência estadunidense como fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada), que parte da comparação de que uma árvore envenenada produz frutos envenenados, construindo-se então a teoria sobre as provas ilícitas por derivação, que foi expressamente adotada no art. 157 do CPP.
Desta forma, o encontro da motocicleta e das 11 gramas de cocaína foi ilícito e, portanto, a oposição do acusado não foi a ato “legal” como preceitua o art. 329 do CP, contaminada, desta forma, a justa causa de todas as imputações.
Destarte, não há outro caminho, senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do CPP.
DISPOSITIVO
Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de A D DA S A relativamente aos crimes do art. 33 da Lei 11.343/06, art. 180 e 329, ambos do CP, ex vi, art. 395, III C/C art. 396 ambos do CPP.
Expeça-se alvará de soltura.
PRI. Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 15 de setembro 2012.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito





[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[3].  Carnelutti, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal, 4 Tomos. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950, p. 78.

[4] Processo n° 2004.001.027085-8