sexta-feira, 2 de março de 2012

Kafka, Direito, Literatura e Processo Penal.


Certa feita, Kafka ficou diante de várias obras de Pablo Picasso nas quais se retrata naturezas-mortas cubistas e outras obras pós-cubistas. Gustav Janouch, que o acompanhava, comentou que o pintor espanhol distorcia os seres e as coisas. Kafka responde que ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência, afirmando, ainda, que a arte é um espelho que adianta como um relógio, sugerindo que Picasso antecipava algo que se tornaria comum à percepção[1].
Cumpre destacar que, para alguns especialistas, Kafka desrealiza o real e realiza o irreal - e é exatamente aí que ele desmascara a ideologia, visto que esta, como fachada, tende a contrabandear a aparência pela realidade[2].
Contam que Lukács em 1956 fez sua primeira revisão a sua concepção de Kafka. O filosofo marxista húngaro teria relatado aos seus discípulos que após a invasão soviética e a queda da República húngara em 1956, fora internado em um castelo-fortaleza na Romênia aguardando julgamento. Na ocasião, não teve acesso à ata de acusação e não pôde se defender. Da mesma forma desconhecia seus juízes, não sabia se seriam magistrados húngaros ou soviéticos, ou ainda uma comissão mista. Mais tarde Lukács fora libertado pelo benefício da dúvida. Mas enquanto aguardava o fim deste misterioso caso a ser julgado, teria confidenciado a sua mulher: “Kafka era um realista, apesar de tudo” e em 1965, em um ensaio, apresenta uma nova visão oposta a que apresentou em 1955 afirmando que Kafka põe em cena toda uma época de desumanidade e que seu universo ganha uma qualidade comovente e profunda [3]. 
É por esta marca realista da obra de Kafka que resolvemos ver o processo penal em sua dimensão do real, do mundo do “ser”. Acreditamos que, realista ou não, a obra de Kafka, em função de seu distanciamento permanente em relação às instituições sociais, demonstra o poder de iluminação profana da literatura, usando a expressão de Walter Benjamim. Kafka foi considerado por André Breton o maior vidente deste século por ser capaz de inspecionar o invisível e ouvir o inaudito, embora muitos tenham chegado a considerá-lo um sociólogo que se expressava de forma literária[4] [5].
Acreditamos ser enriquecedor o diálogo entre direito e literatura. Os meios de expressão literária são capazes de alargar nosso conhecimento sobre o mundo e as pessoas. A literatura enriquece nossa percepção da realidade social, iluminando de forma diferente os conceitos científicos[6].
Particularmente Kafka, sustenta Carrouges (Carrouges[7] apud Löwy, 2005), abdica do ponto de vista corporativo dos homens da lei, que seriam pessoas bem instruídas e bem criadas, convencidas de que conhecem a verdade sobre as leis. Ele passa a ver a lei e os seus senhores, do ponto de vista da massa miserável que suporta a opressão sem compreender. Mas por outro lado, a obra genial de Kafka desmascara tudo o que há de ignorância humana no saber jurídico e de saber humano na ignorância dos sujeitados.
A Colônia Penal, O Castelo, A Metamorfose, são obras que possuem grande importância para o direito, mas nenhuma é tão emblemática e conhecida no universo jurídico, como O Processo. Já nas primeiras páginas deste romance encontra-se a constatação que vai ao encontro do pensamento de Agamben, no sentido de que o estado de exceção convive no seio do Estado de Direito e de que a vida nua graça neste Estado, sendo o campo de concentração a matriz oculta da política em que ainda vivemos, ou seja, é um paradigma da modernidade (e mesmo da contemporaneidade).
A contextualização político-jurídica do romance é a seguinte: “Entretanto, K. vivia em um Estado Constitucional no qual reinava a paz, no qual todas as leis estavam em vigor, de modo que quem eram aqueles que se atreviam a invadir a sua casa?” [8].
O resumo desta ópera (ensaio): Kafka é um autor realista e se olharmos as prateleiras das varas criminais com sensibilidade crítica, encontraremos inúmeros personagens como “K”... e como as agencias opressoras ousam ignorar o Estado Democrático de Direito.


[1] JANOUCH, Gustav. Conversas com Kafka. Trad. Celina Luz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
[2] CARONE, Modesto. O Realismo de Franz Kafka. Novos Estudos – CEBRAP (Scielo Brasil), In http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002008000100013&script=sci_arttext, consultado em 25/11/2009.
[3] LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Tradução: Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 190-191.
[4] LÖWY, Franz...op. cit., p.196-197.
[5] Vale lembrar que Kafka formou-se em Direito.
[6] LÖWY, Franz...op. cit., p. 198-199.
[7] CARROUGES, Michel. Dans le rire et les larmes de la vie. Cahiers de la Compagine Madeleine Renaud’Jean Louis Barrault. Outubro de 1957, p. 114-115.
[8] KAFKA, Franz. O Processo. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Marin Claret, 2008, p. 42.