sábado, 22 de setembro de 2012

PM usurpa função da PC. Resultado: Ausência de investigação eficiente: prova ilícita.



TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUIZO DE DIREITO DA SEGUNDA VARA CRIMINAL



SENTENÇA


Processo nº 0181703-27.2012.8.19.0004


RELATÓRIO

Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de V. R.R. S., relativamente aos crimes do art. 33 e art. 35, c/c art. 40, IV, todos da Lei 11.343/06
É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

Dos fatos

Os policiais narram em seus depoimentos que receberam denúncia anônima informando que na Avenida Dakar, localidade conhecida como favela da linha e que se dirigiram a descrita residência e encontraram no “interior do quarto” o acusado e o material entorpecente (fls. 07 e 09).
Da análise jurídica
O Procurador de Justiça e Professor Afrânio Silva Jardim publicou um parecer que se amolda perfeitamente ao presente caso. Logo de início, o culto professor e festejado membro do Parquet já adverte:
Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático, o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados. Entretanto, faz esta opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a penas injustas (Tutela Constitucional do Domicílio e Prisão em Flagrante. In Temas para uma Perspectiva Crítica do Direito. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 12).
 No parecer o referido doutrinador examinava uma decisão de nossa lavra, na qual rejeitamos uma denúncia em razão de policiais militares terem ingressado em uma residência, a noite e sem mandado, e prenderam os residentes por tráfico de entorpecentes. Conclui o processualista, em seu parecer, pelo acerto da rejeição das denúncias em razão da violação a normas constitucionais fundamentais. 
O nosso atual caso em nada se diferencia do anterior. Vejamos:
A Constituição é clara ao estabelecer que o domicílio é asilo inviolável da pessoa, nele só se podendo ingressar na hipótese de flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou, durante o dia, com autorização judicial. Fora destas hipóteses taxativas não é possível o ingresso no domicílio, lembrando-se sempre que o conceito deste é amplo (art. 5o, XI, da CRF/1988).
A situação de flagrante significa visibilidade material do delito[1]. Não existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há violação do domicílio e a superveniente apreensão de droga passa a ser ilícita por força dos incisos XI e LVI do art. 5o da Constituição.
Não se pode confundir “cometimento de delito” com “estado de flagrância”. Um delito pode estar sendo cometido sem que ninguém perceba (e isso não autoriza ingresso no domicílio), mas para a configuração do flagrante há que se ter percepção pelos sentidos, podendo, inclusive, o delito já ter sido consumado e a percepção ter ocorrido logo após, como nas hipóteses do flagrante impróprio e o presumido.
Não é raro o ingresso da polícia militar, inclusive à noite, no domicílio alheio[2], sem portar mandado judicial, estimulados tão somente nas chamadas “denúncias anônimas” de que existe venda de droga no lugar. Por se tratar de crime permanente, o princípio Constitucional da eficiência (art. 37 da CRF/1988) indica que a polícia deve investigar, vigiar, solicitar o mandado e esperar o momento oportuno para o ingresso regular.
Basta um raciocínio simples para se aferir a incorreção deste entendimento: a polícia recebe notícia anônima sobre tráfico em determinada casa. Sem mandado se dirige ao local. Caso não haja a autorização do morador só lhe restarão dois caminhos: 1. ingressar arbitrariamente; 2. procurar a autoridade judicial para conseguir o mandado. Neste último caso, se droga houver no local será toda eliminada pela descarga e eventual busca será frustrada. Assim, quando a polícia se dirige a uma casa suspeita, sem mandado, está assumindo o risco de frustrar a busca ou de cometer ilegalidade. Das duas uma, ou se violará o inciso XI do art. 5o (proteção ao domicílio), ou se vulnerará o art. 37 da CRF/1988 (eficiência)[3].
A adoção de entendimento no sentido contrário conduz a um verdadeiro absurdo, pois o juiz não pode autorizar a polícia a entrar à noite na residência das pessoas, mas uma simples notícia anônima segundo uma corrente jurisprudencial seria capaz de autorizar o ingresso, inclusive à noite em domicílio alheio.
Com maior razão se deve exigir o mandado diante de crimes permanentes, ou seja, aqueles nos quais a consumação se protrai no tempo, é prolongada, como no caso dos autos. Nos crimes permanentes, quando se tem notícia de sua ocorrência, é possível planejar a ação e aguardar o momento oportuno para efetuar o flagrante, a própria lei de Drogas prevê a ação esperada. A expedição do mandado não frustraria a ação policial.
O erro reside talvez na confusão de função, vez que a Polícia Militar, por força da Constituição, deve fazer policiamento ostensivo para o que está preparada e com postura como a dos autos, usurpa função da Polícia Civil, a quem incumbe o papel de polícia judiciária, ou seja, de investigar os delitos. 
Voltando a lição de Afrânio Silva Jardim, temos a definição da situação de flagrante que autoriza o ingresso:
Sempre entendemos que a tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja, só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o consentimento dos moradores. Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado art. 302 não são flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão (JARDIM, Tutela Constitucional, op. cit., p. 13).
Note-se que não estamos aqui sustentando tese radical e isolada, pois temos ao nosso socorro não só um dois maiores ícones do Ministério Público, o Professor Afrânio Silva Jardim, como também um dos mais tradicionais processualistas do Brasil como se vê da pena de Tourinho Filho que também abrilhantou o quadro do Ministério Público:
Preciso é, contudo, haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão “flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e... quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente... (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1992, vol. 3, p. 361).
Com efeito, dos mais tradicionais aos mais libertários, ou seja, de Tourinho a Gerado Prado[4], é límpida a ideia da inviolabilidade do domicílio e da irregularidade da prisão que violar este preceito. Pensar o contrário só se justifica em razão de um apelo utilitarista que remonta Bentham, e se traduz na lógica de que “os fins justificam os meios”, o que atenta contra o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República de 1988.
No caso dos autos, tanto a denúncia, como o APF, dão conta que o ingresso foi sem mandado e às fls. 06 e 09 temos depoimento no sentido de que ingressaram no domicílio e encontraram o acusado no quarto, onde também encontraram a droga e demais objetos.
O resultado é que o ingresso ilegal no domicílio contaminou todas as provas do crime, não sobrando nada lícito para formar a justa causa da ação penal. Não só a prova diretamente ilícita é vedada pela Constituição, mas tudo que derivar da ilicitude será considerado imprestável ao processo, é o que ficou definido na experiência estadunidense como fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada), que parte da comparação de que uma árvore envenenada produz frutos envenenados, construindo-se então a teoria sobre as provas ilícitas por derivação, que foi expressamente adotada no art. 157 do CPP.
Destarte, não há outro caminho, senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do CPP.
DISPOSITIVO
Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de V. R.RS., relativamente aos crimes do art. 33 e art. 35, c/c art. 40, IV, todos da Lei 11.343/06, ex vi, art. 395, III C/C art. 396 ambos do CPP.
Expeça-se alvará de soltura.
PRI. Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 15 de setembro 2012.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito




[1].  Carnelutti, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal, 4 Tomos. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Bosch, 1950, p. 78.

[2].  Registre-se: em domicílios pobres em áreas carentes e de exclusão.
[3] Este posicionamento já externamos em nossa obra: NICOLITT, André. MANUAL DE PROCESSO PENAL. Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª edição, 2012.  
[4] Processo n° 2004.001.027085-8

terça-feira, 4 de setembro de 2012

DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE EM MATÉRIA PENAL: REFLEXÃO A PARTIR DA ADI 4.424 E DA ADC 19 – STF E AS NOVAS CONTROVÉRSIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA


Nos estudos sobre controle de constitucionalidade, muita discussão já se travou em relação aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Há tempos a questão girava basicamente em torno de a declaração importar nulidade (efeitos ex tunc) ou anulabilidade (efeitos ex nunc).
Atualmente, a doutrina constitucional se ocupa com diversas técnicas, como a interpretação conforme, a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, o “apelo ao legislador” etc.
No Brasil, houve um avanço operacional a partir da Lei 9.868/1999, que na trilha do ordenamento português e alemão, adotou a possibilidade de o STF temperar os efeitos da decisão por meio da chamada “modulação dos efeitos temporais”.(1)
Mas, em matéria penal não se tem dado muita atenção ao resultado do controle concentrado de constitucionalidade feito pelo STF, o que na prática tem gerado muita confusão relativamente às questões intertemporais.
Na ADI 4.424, o STF fixou interpretação conforme à Constituição para o art. 16 da 11.340/2006, dispondo que  ação penal mesmo na hipótese de lesão corporal leve, no âmbito da violência doméstica, é pública incondicionada.(2) Tal regência versa sobre norma híbrida, pois, apesar de dispor sobre o exercício da ação penal, amplia o direito de punir do Estado, afastando a possibilidade de extinção da punibilidade pela decadência ou retratação da representação. Por tal razão, o tema deve ser visto à luz do princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial ao réu (art. 5.º, XL, da CF/1988).
Da natureza dos controles concentrado e abstrato
Ao analisar os efeitos das decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, não podemos perder de vista a natureza de tal atividade para que possamos perceber os princípios regentes.
Ao controle concentrado associa-se o controle abstrato, ou seja, não se está diante de um caso concreto, não há disputa, a discussão é sobre a lei em si, tem-se um processo objetivo.(3)
O controle concentrado deita raízes nas ideias de Hans Kelsen, que o concebeu para a Áustria (1920). Diversamente do judicial review americano, o controle concentrado não é propriamente uma fiscalização judicial, mas sim uma função constitucional autônoma, que pode ser definida como função legislativa negativa.(4)
No controle difuso correspondente ao judicial review, os juízes exercem um poder de fiscalização (Prüfungsrecht) e controlam a validade da norma na solução do caso concreto com efeito inter partes. Já o controle concentrado possui eficácia erga omnes, correspondendo a uma competência de rejeição (Verwerfungskompetenz), pois o órgão se afirma como defensor da Constituição(5) “legislando” negativamente,(6) eliminando do ordenamento jurídico(7) a norma inconstitucional.(8)
O STF, ao declarar a inconstitucionalidade da lei, exerce função constitucional autônoma (política e atípica) de guardião da Constituição, legislando. A natureza desta função não é jurisdicional, mas legislativa negativa.
Da submissão da decisão ao art. 5.o, XL
A par da natureza da atividade do STF no controle abstrato de constitucionalidade, podemos chegar à conclusão de que a decisão do STF ao declarar a inconstitucionalidade está submetida ao princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial ao réu (irretroatividade da lex severior) e retroatividade da lei favorável (retroatividade da lex mitior), art. 5.º, XL, da CF.
Não temos dúvida de que em um Estado Democrático de Direito, todos, inclusive o STF, devem observância e submissão à Constituição. Assim, se o legislador positivo está submetido ao inc. XL do art. 5.º da CF/1988, com maior razão o legislador negativo, que exerce função atípica, também o estará.
O princípio da segurança jurídica, na forma aplicada em matéria penal, não permite que alguém que paute sua conduta em um ato do Estado, que nasce com presunção de constitucionalidade como as leis, seja surpreendido por uma decisão do STF que criminaliza ou da tratamento mais gravoso a fato que a lei (que se presume constitucional) não fazia. 
Da modulação dos efeitos temporais
De modo geral, adotou-se a concepção de que a norma inconstitucional é nula, logo, sua declaração possui efeitos retroativos (ex tunc). Esta concepção prevalente nos Estados Unidos se alargou com algumas exceções para inúmeros países que adotam o controle judicial de constitucionalidade, como Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e também o Brasil. Apenas na Áustria há fidelidade à concepção kelseniana de que a lei inconstitucional é anulável, ou seja, a decisão é desconstitutiva, com efeitos prospectivos (ex nunc).(9)
Já se assinala que a chamada “teoria das nulidades” se apresenta como um dos problemas mais complicados da disciplina processual.(10) Ousamos dizer que é, na verdade, um dos temas mais insolúveis da Teoria do Direito. Basta notar a fragilidade da premissa de que a “sanção” de nulidade tem eficácia retroativa, apagando todos os efeitos já produzidos anteriormente a sua declaração. Ora, o casamento nulo produz efeitos para o cônjuge de boa-fé e apara a prole (art. 1.561 do CC/2002). A sentença penal condenatória nula, no júri, produz o efeito de limitar futura condenação em razão da vedação da reformatio in pejus indireta. Também no tema de controle de constitucionalidade a teoria das nulidades mostra-se insuficiente.
Na Alemanha, um dos debates inaugurais, que demonstra a necessidade de rever a dicotomia de paradigma nulidade-anulabilidade, se deu em relação ao problema da “exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade”. Tratava-se de uma lei que beneficiava um grupo (reajuste ou vantagens), porém excluía o benefício, expressa ou implicitamente, de outros, em igual situação. No caso, não seria justo declarar a nulidade do benefício da categoria contemplada, mas sim, estendê-lo aos demais. Daí se iniciou a ideia de que a declaração de inconstitucionalidade não poderia necessariamente importar nulidade.(11)
A doutrina constitucional atualmente ocupa-se do tema da modulação dos efeitos temporais das decisões em controle de constitucionalidade por via abstrata. Os mecanismos de modulação são importantes para temperar o rigor e a insuficiência da antiga dicotomia nulidade-anulabilidade. A superação deste paradigma tem sido paulatinamente construída e hoje já podemos falar de avanços, como a interpretação conforme a Constituição, a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, a inconstitucionalidade sem declaração de nulidade e o “apelo ao legislador”.
Antes da Lei 9.868/1999, o STF era um dos poucos tribunais com jurisdição constitucional a não usar, de modo expresso, da limitação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Não se nega o princípio geral da nulidade da lei inconstitucional, mas afasta-se esse princípio sempre que se revelar mais gravoso ao sistema jurídico, traduzindo-se em ameaça à segurança jurídica, que também tem status constitucional. Com isso, muitas vezes a declaração de inconstitucionalidade não importará necessariamente eliminação direta e imediata da lei do ordenamento jurídico, deixando-se de lado a eficácia cassatória com efeito retroativo para assumir efeitos apenas prospectivos.(12)
Entre nós, a Lei 9.868/1999 dispõe: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
Com décadas de atraso em comparação a outras democracias, nosso ordenamento já está dotado de instrumento que permite o temperamento dos efeitos temporais nas declarações de inconstitucionalidade, impende, porém, maior zelo e atenção ao tema em matéria penal, merecendo destaque a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade quando a norma ou interpretação a ser excluída da ordem jurídica forem mais benéficas ao réu, ou seja, a decisão terá efeito erga omnes, porém, ex nunc
A ADI 4.424
Até o momento da construção do presente ensaio não foram lavrados os votos que construíram a decisão na ADI 4.424, pelo que não estamos certos se o tema foi enfrentado por ocasião do julgamento. Contamos apenas com a decisão que assim dispõe:
“ADI 4.424: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei n. 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso”.
A decisão fixa como pública e incondicionada a natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal leve no âmbito da violência doméstica. Sem discutir o desacerto da decisão, que para nós representa um retrocesso por diminuir a autonomia da mulher perante o Estado – e provocará uma onda de processos que redundarão em absolvições diante do testemunho das vítimas reconciliadas que não foram ouvidas sobre a persecução penal(13) – o fato é que não há como conferir outro efeito à decisão do STF, senão o prospectivo (ex nunc).
A decisão do STF não poderá atingir fatos ocorridos antes de seu trânsito em julgado. A norma tem presunção de constitucionalidade e as pessoas se pautam em consonância com esta e, ainda, tendo a seu lado jurisprudência consolidada no STJ,(14) no sentido de que a lesão corporal exige representação. Assim, não podem ser surpreendidas com o resultado de uma decisão em controle abstrato, cuja natureza é legislativa negativa, com resultado prejudicial ao indivíduo na medida em que fortalece o direito de punir.
A declaração de inconstitucionalidade, na hipótese, não pode importar nulidade da interpretação fixada anteriormente, devendo se aplicar, neste caso, a chamada inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, ou seja, a decisão tem efeito prospectivo (ex nunc).
Na doutrina,(15) a regra da nulidade somente pode ser afastada quando se demonstrar que a tradicional técnica de nulidade, com efeitos retroativos (ex tunc), envolverá sacrifício da segurança jurídica ou outro valor constitucionalmente materializável. É o que ocorre no caso, pois admitir a retroatividade da decisão do STF seria rasgar o inc. XL do art. 5.º da CF/1988.
Antes mesmo do trânsito em julgado da decisão as varas de violência doméstica, já estão sendo conclamadas a dirimirem reflexos da decisão do STF. São promotores que, mesmo diante de retratação de representação anterior à decisão do STF, estão oferecendo denúncia. Delegados remetendo inquéritos sobre fatos anteriores a decisão sem que haja representação da vítima, promotores requerendo desarquivamento de inquérito arquivado por falta de representação, vítimas e acusados perplexos diante de persecuções penais mesmo após seus atos de disposição da persecução e de inequívocos atos de reconciliação etc.
Bom seria que o próprio STF fixasse efeito prospectivo a sua decisão. Não o fazendo, o juiz não terá outro caminho a não ser interpretar a decisão no sentido de que seus efeitos são prospectivos por força do art. 5.º, XL, da CF/1988. A decisão do STF, como ato normativo, abstrato, cuja natureza é legislativa, deve ser interpretada pelo juiz, que deverá suprir suas omissões com os princípios do direito, como no caso, o princípio da irretroatividade da lei prejudicial ao acusado.
Os efeitos da ADC 19
Diferentemente do que ocorre na ação direta de inconstitucionalidade, a declaração de constitucionalidade não produz uma mudança qualitativa na situação jurídica. O STF apenas afirma expressamente a sua constitucionalidade sem provocar qualquer efeito sobre a validade da norma. A lei vige após a decisão tão qual vigorava antes. Nada impede que, posteriormente, o legislador revogue ou altere a lei declarada constitucional.(16)
Assim, quanto ao resultado da ADC 19, a declaração de que os arts. 1.º, 33 e 41 são constitucionais servem para afastar as controvérsias existentes sobre o tema.(17)
Também sem enfrentar o desacerto da decisão, uma nota deve ser feita em relação à declaração de constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha. Não é possível pensar que a Lei 9.099/1995 nunca será aplicada no âmbito da violência doméstica. O art. 41 se refere expressamente aos “crimes”, o que não abrange as contravenções penais, não sendo possível aplicar analogicamente a vedação que se faz “aos crimes” para alcançar também as contravenções penais, pois se trata de analogia prejudicial ao réu, vedada pelo ordenamento constitucional e legal.
Desta forma, às contravenções penais no âmbito da violência doméstica são aplicáveis as normas da Lei 9.099/1995, não alcançadas pelo art. 41 da Lei 11.340/2006, tampouco atingidas pela ADC 19 do STF.
Conclusão
Considerando a natureza jurídica da atividade do STF no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (legislativa negativa), bem como a norma inserta no inc. XL do art. 5.º da CF/1988 (irretroatividade da lei penal prejudicial), na hipótese de o STF não delibar sobre o efeito prospectivo da decisão, a ação penal nos crimes de lesão corporal leve só será pública incondicionada relativamente aos fatos ocorridos após o trânsito em julgado da decisão da ADI 4.424 do STF.
Apesar da ADC 19 e do que dispõe o art. 41 da Lei 11.340/2006, às contravenções penais, no âmbito da violência doméstica familiar, são aplicáveis as normas da Lei 9.099/1995. 
NOTAS
(1) Barroso, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro.  São Paulo: Saraiva, 2011. p. 232-233.
(2) STF, ADI 4.424: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos arts. 12, inciso I, e 16, ambos da Lei 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente)”.
(3) Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição.  Coimbra: Almedina, 2003. p. 900.
(4) Idem, p. 898-899.
(5) Idem, p. 903.
(6) Também reconhecendo ao STF a função legislativa negativa: Barroso, Luis Roberto. Op. cit., p. 177.
(7) Canotilho, J. J. Gomes. Op. cit., p. 903.
(8) Sobre a “função de defesa”, ou seja, de eliminar do ordenamento jurídico a norma inconstitucional, própria do controle abstrato, vale conferir: Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 56.
(9) Barroso, Luis Roberto. Op. cit., p. 39-40.
(10) Ramalho Junior, Almir Duclerc. Nulidade no processo penal:do tradicional “inferno” teórico a uma racionalidade garantista. In: Moreira, Rômulo (org.).  Leituras complementares de processo penal. Salvador:JusPodivm, 2008. p. 77.
(11) Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 270.
(12) Idem, p. 332-333.
(13) Não conseguimos perceber em que medida e com base em que o STF concluiu que “o art. 16 esvazia a proteção constitucional dada à mulher”. Poderíamos questionar em que medida referido dispositivo não fortalece à autonomia da mulher, bem como a importância da família, também protegida constitucionalmente.
(14) STJ, HC 154940 e REsp. 1051314.
(15) Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 395.
(16) Idem, p. 359-360.
(17) A nosso sentir, no caso vertente, irá ocorrer apenas o acirramento das controvérsias.
André Luiz Nicolitt
Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa-Lisboa.
Mestre em Direito pela UERJ – Professor do IBMEC-Rio
Juiz de Direito - TJRJ.
Texto publicado pela primeira vez no Boletim do Ibccrim. 
Como citar:
NICOLITT, André Luiz. Declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade em matéria penal: reflexão a partir da ADI 4.424 e da ADC 19 – STF e as novas controvérsias sobre a Lei Maria da Penha. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, n. 234, p. 08-09, mai., 2012.