
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUIZO DE DIREITO DA SEGUNDA VARA CRIMINAL
SENTENÇA
Processo nº
0181703-27.2012.8.19.0004
RELATÓRIO
Trata-se de Ação Penal proposta
pelo Ministério Público em face de V. R.R. S., relativamente aos crimes do art. 33 e art. 35, c/c art. 40, IV, todos da
Lei 11.343/06
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Dos fatos
Os policiais narram em seus depoimentos que
receberam denúncia anônima informando que na Avenida Dakar, localidade conhecida
como favela da linha e que se dirigiram a descrita residência e encontraram no
“interior do quarto” o acusado e o material entorpecente (fls. 07 e 09).
Da análise
jurídica
O Procurador de Justiça e Professor Afrânio
Silva Jardim publicou um parecer que se amolda perfeitamente ao presente caso.
Logo de início, o culto professor e festejado membro do Parquet já adverte:
Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de
interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos
individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático,
o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados. Entretanto, faz esta
opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a
penas injustas (Tutela Constitucional do Domicílio e Prisão em Flagrante. In Temas para uma Perspectiva Crítica do
Direito. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 12).
No
parecer o referido doutrinador examinava uma decisão de nossa lavra, na qual
rejeitamos uma denúncia em razão de policiais militares terem ingressado em uma
residência, a noite e sem mandado, e prenderam os residentes por tráfico de
entorpecentes. Conclui o processualista, em seu parecer, pelo acerto da
rejeição das denúncias em razão da violação a normas constitucionais
fundamentais.
O nosso atual caso em nada se diferencia do
anterior. Vejamos:
A
Constituição é clara ao estabelecer que o domicílio é asilo inviolável da
pessoa, nele só se podendo ingressar na hipótese de flagrante delito, desastre,
para prestar socorro ou, durante o dia, com autorização
judicial. Fora destas hipóteses taxativas não é possível o ingresso no
domicílio, lembrando-se sempre que o conceito deste é amplo (art. 5o, XI, da CRF/1988).
A
situação de flagrante significa visibilidade
material do delito[1]. Não
existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos
relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando
se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há
violação do domicílio e a superveniente apreensão de droga passa a ser ilícita
por força dos incisos XI e LVI do art. 5o
da Constituição.
Não se
pode confundir “cometimento de delito” com “estado de flagrância”. Um delito
pode estar sendo cometido sem que ninguém perceba (e isso não autoriza ingresso
no domicílio), mas para a configuração do flagrante há que se ter percepção
pelos sentidos, podendo, inclusive, o delito já ter sido consumado e a
percepção ter ocorrido logo após, como nas hipóteses do flagrante impróprio e o
presumido.
Não é
raro o ingresso da polícia militar, inclusive à noite, no domicílio alheio[2], sem
portar mandado judicial, estimulados tão somente nas chamadas “denúncias
anônimas” de que existe venda de droga no lugar. Por se tratar de crime
permanente, o princípio Constitucional da eficiência (art. 37 da CRF/1988)
indica que a polícia deve investigar, vigiar, solicitar o mandado e esperar o
momento oportuno para o ingresso regular.
Basta um raciocínio simples para se
aferir a incorreção deste entendimento: a polícia recebe notícia anônima sobre
tráfico em determinada casa. Sem mandado se dirige ao local. Caso não haja a
autorização do morador só lhe restarão dois caminhos: 1. ingressar
arbitrariamente; 2. procurar a autoridade judicial para conseguir o mandado.
Neste último caso, se droga houver no local será toda eliminada pela descarga e
eventual busca será frustrada. Assim, quando a polícia se dirige a uma casa
suspeita, sem mandado, está assumindo o risco de frustrar a busca ou de cometer
ilegalidade. Das duas uma, ou se violará o inciso XI do art. 5o (proteção ao domicílio), ou se
vulnerará o art. 37 da CRF/1988 (eficiência)[3].
A
adoção de entendimento no sentido contrário conduz a um verdadeiro absurdo,
pois o juiz não pode autorizar a polícia a entrar à noite na residência das
pessoas, mas uma simples notícia anônima segundo uma corrente jurisprudencial seria
capaz de autorizar o ingresso, inclusive à noite em domicílio alheio.
Com
maior razão se deve exigir o mandado diante de crimes permanentes, ou seja, aqueles
nos quais a consumação se protrai no tempo, é prolongada, como no caso dos
autos. Nos crimes permanentes, quando se tem notícia de sua ocorrência, é
possível planejar a ação e aguardar o momento oportuno para efetuar o
flagrante, a própria lei de Drogas prevê a ação esperada. A expedição do
mandado não frustraria a ação policial.
O erro
reside talvez na confusão de função, vez que a Polícia Militar, por força da
Constituição, deve fazer policiamento ostensivo para o que está preparada e com
postura como a dos autos, usurpa função da Polícia Civil, a quem incumbe o
papel de polícia judiciária, ou seja, de investigar os delitos.
Voltando
a lição de Afrânio Silva Jardim, temos a definição da situação de flagrante que
autoriza o ingresso:
Sempre entendemos que a
tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja,
só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto
se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante
a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem
com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o
consentimento dos moradores. Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado
art. 302 não são flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se
em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a
garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações
que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão (JARDIM,
Tutela Constitucional, op. cit., p. 13).
Note-se
que não estamos aqui sustentando tese radical e isolada, pois temos ao nosso
socorro não só um dois maiores ícones do Ministério Público, o Professor
Afrânio Silva Jardim, como também um dos mais tradicionais processualistas do
Brasil como se vê da pena de Tourinho Filho que também abrilhantou o quadro do
Ministério Público:
Preciso é, contudo,
haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão
“flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e...
quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que
pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente...
(Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1992, vol. 3, p. 361).
Com efeito, dos mais
tradicionais aos mais libertários, ou seja, de Tourinho a Gerado Prado[4], é
límpida a ideia da inviolabilidade do domicílio e da irregularidade da prisão
que violar este preceito. Pensar o contrário só se justifica em razão de um
apelo utilitarista que remonta Bentham, e se traduz na lógica de que “os fins justificam os meios”, o que
atenta contra o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República de
1988.
No caso dos autos, tanto a
denúncia, como o APF, dão conta que o ingresso foi sem mandado e às fls. 06 e
09 temos depoimento no sentido de que ingressaram no domicílio e encontraram o
acusado no quarto, onde também encontraram a droga e demais objetos.
O resultado é que o ingresso ilegal no domicílio
contaminou todas as provas do crime, não sobrando nada lícito para formar a
justa causa da ação penal. Não só a prova diretamente ilícita é
vedada pela Constituição, mas tudo que derivar da ilicitude será considerado
imprestável ao processo, é o que ficou definido na experiência estadunidense
como fruits of the poisonous tree
(frutos da árvore envenenada), que parte da comparação de que uma árvore
envenenada produz frutos envenenados, construindo-se então a teoria sobre as provas ilícitas por derivação, que
foi expressamente adotada no art. 157 do CPP.
Destarte,
não há outro caminho, senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do
CPP.
DISPOSITIVO
Isto
posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de V. R.RS., relativamente aos crimes do art. 33 e art. 35, c/c art. 40, IV, todos da
Lei 11.343/06, ex vi, art. 395, III
C/C art. 396 ambos do CPP.
Expeça-se
alvará de soltura.
PRI.
Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 15 de setembro 2012.
ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito
[1]. Carnelutti, Francesco. Lecciones sobre el Proceso
Penal, 4 Tomos. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires:
Bosch, 1950, p. 78.
[2]. Registre-se: em domicílios pobres em áreas
carentes e de exclusão.
[3] Este posicionamento já externamos em
nossa obra: NICOLITT, André. MANUAL DE
PROCESSO PENAL. Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª edição, 2012.