
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
COMARCA DE SÃO GONÇALO
JUIZO DE DIREITO DA SEGUNDA VARA CRIMINAL
SENTENÇA
Processo nº 0168374-45.2012.8.19.0004
RELATÓRIO
Trata-se de Ação Penal proposta
pelo Ministério Público em face de A. D. DA S. A. relativamente
aos crimes do art. 33 da Lei
11.343/06, art. 180 e 329, ambos do CP.
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Dos fatos
Os policiais narram em seus depoimentos que estavam
em patrulhamento e notaram o acusado que ficou nervoso quando avistou a
polícia. Narram, ainda, que abordaram o acusado e na busca pessoal nada foi
encontrado que estivesse relacionado com o crime, mas “estava com a quantia de
R$ 40,00, sendo que o declarante ao cheirar o dinheiro notou que exalava um
forte cheiro de cocaína”. Então, a guarnição desconfiou do acusado e “inquiriu
o mesmo sobre a origem do dinheiro; que o mesmo acabou confessando que vendia
drogas e levou a guarnição até a casa dele”. Na residência, o acusado teria
mostrado seu quarto onde estava escondido uma carga de droga, consistentes em
11 invólucros, totalizando 11 gramas de cocaína.
Informam, em seguida, que quando saiam da
residência, perceberam uma motocicleta coberta por um lençol e que a mesma
tinha origem ilícita. Por fim, relatam que ao chegarem à delegacia de polícia,
o acusado tentou fugir, correndo, e foi detido pelos policiais (fls. 06/09).
Em sede policial, tendo a autoridade policial
cumprido as formalidades legais, informou ao então conduzido, de seus direitos
constitucionais, dentre os quais o de permanecer calado e este resolveu
permanecer em silêncio e só falar em juízo (fls. 04).
Algo parece incoerente!
Note-se que o policial militar disse que ao
cheirar a nota que o acusado portava, sentiu “um forte cheiro de cocaína”. Todavia, a professora Irene Muakad,
doutora em medicina forense, professora da USP e professora titular da
Mackenzie, ensina que o cocainismo em forma de aspiração é o
vício de usar a cocaína em pó, produto em forma de sal, obtido por um processo
químico, que chega ao consumidor na
forma de cristal ou um pó branco, amargo e sem cheiro. (MUAKAD,
Irene Batista. A Cocaína e as suas formas
de consumo.[1])
Além
desta contradição há outras perplexidades nesta estória. Note-se que um
indivíduo que não portava nada de ilícito se assusta com a polícia (será que há
motivo para isso?). Em seguida, sem que portasse qualquer coisa de ilícito,
resolve falar tudo para os policiais, ou seja, que é traficante e inclusive
leva os policiais até sua residência. Todavia, ao chegar na delegacia de
polícia, advertido de suas garantias constitucionais e com sua integridade
física assegurada, seu comportamento abruptamente se modifica, ou seja, resolve
usar de seu direito de permanecer em silêncio (fls. 04).
A
conclusão só pode ser uma, os fatos não se deram como narrado pelo policial
militar. Cocaína, segundo a professora não tem cheiro. Mas, ainda que tivesse
cheiro, a suposta confissão do acusado, mesmo que não fosse motivada por
qualquer outro estímulo senão seu desejo de colaborar com a polícia, referida
confissão não tem validade, pois não foi precedida de informação quanto ao
direito de permanecer em silêncio, pois quando o acusado foi levado à
autoridade policial e teve tal garantia assegurada, assim exerceu seu direito
constitucional.
É
no mínimo curioso indagar porque, na rua, perante policiais militares um
indivíduo fala tudo, e diante da autoridade policial, revestido o ato das
formalidades necessárias, resolve calar. Diversidade de circunstâncias
diversidade de comportamento.
Da análise
jurídica
O Procurador de Justiça e Professor Afrânio
Silva Jardim publicou um parecer que se amolda perfeitamente ao presente caso.
Logo de início, o culto professor e festejado membro do Parquet já adverte:
Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de
interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos
individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático,
o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados. Entretanto, faz esta
opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a
penas injustas (Tutela Constitucional do Domicílio e Prisão em Flagrante. In Temas para uma Perspectiva Crítica do
Direito. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 12).
No
parecer o referido doutrinador examinava uma decisão de nossa lavra, na qual
rejeitamos uma denúncia em razão de policiais militares terem ingressado em uma
residência, a noite e sem mandado, e prenderam os residentes por tráfico de
entorpecentes. Conclui o processualista, em seu parecer, pelo acerto da
rejeição das denúncias em razão da violação a normas constitucionais
fundamentais.
O nosso atual caso em muito se assemelha a estes
e exige muita atenção para a efetivação de garantias constitucionais. No caso
vertente, não foi respeitado por parte dos policiais militares o direito ao
silêncio e houve uma confissão inválida que conduziu os policiais até o
interior da residência. Tendo o ingresso ocorrido sem consentimento válido,
este é ilícito e tudo que se obteve a partir daí é ilícito por derivação.
O direito ao silêncio, o nemo tenetur se detegere, pode parecer um produto de luxo ou uma
sofisticação incompatível com nossa realidade. Mas se pretendemos diminuir o
hiato entre o ser e o dever ser, é preciso seguir a advertência de DWORKIN e levar “os direitos a sério”[2].
Vejamos:
A
Constituição é clara ao estabelecer que o domicílio é asilo inviolável da
pessoa, nele só se podendo ingressar na hipótese de flagrante delito, desastre,
para prestar socorro ou, durante
o dia, com autorização judicial. Fora destas hipóteses taxativas
não é possível o ingresso no domicílio, lembrando-se sempre que o conceito
deste é amplo (art. 5o, XI, da
CRF/1988).
A
situação de flagrante significa visibilidade
material do delito[3]. Não
existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos
relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando
se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há
violação do domicílio e a superveniente apreensão de droga passa a ser ilícita
por força dos incisos XI e LVI do art. 5o
da Constituição. O mesmo ocorre se o ingresso deu-se com base em consentimento
não esclarecido ou viciado.
Não se
pode confundir “cometimento de delito” com “estado de flagrância”. Um delito
pode estar sendo cometido sem que ninguém perceba (e isso não autoriza ingresso
no domicílio), mas para a configuração do flagrante há que se ter percepção
pelos sentidos, podendo, inclusive, o delito já ter sido consumado e a
percepção ter ocorrido logo após, como nas hipóteses do flagrante impróprio e o
presumido.
A
adoção de entendimento no sentido contrário conduz a um verdadeiro absurdo,
pois se juiz não cumpre a exigência do art. 186 do CPP, a confissão do acusado
é inválida. Da mesma forma, se o Delegado de Polícia não cumpre a exigência do
art. 6°, V, c/c art. 186 do CPP, a confissão também não serve como justa causa
para a ação penal. Não obstante, o policial militar arranca uma confissão do
acusado sem tais advertências e esta teria validade? Por óbvio não podemos
aceitar tal confissão sob pena de conferirmos ao PM um poder soberano, superior
ao do Juiz e do Delegado de Polícia.
Voltando
a lição de Afrânio Silva Jardim, temos a definição da situação de flagrante que
autoriza o ingresso:
Sempre entendemos que a
tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja,
só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto
se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante
a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem
com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o
consentimento dos moradores. Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado
art. 302 não são flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se
em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a
garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações
que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão (JARDIM,
Tutela Constitucional, op. cit., p. 13).
Com
efeito, nem mesmo se admitíssemos que o “cheiro da nota” fosse um dado
verídico, e se o considerássemos como uma situação de flagrante presumido,
ainda assim, na precisa lição de Afrânio Silva Jardim, o ingresso não estaria
autorizado e a apreensão da droga seria ilícita.
Note-se
que não estamos aqui sustentando tese radical e isolada, pois temos ao nosso
socorro não só um dois maiores ícones do Ministério Público, o Professor
Afrânio Silva Jardim, como também um dos mais tradicionais processualistas do
Brasil como se vê da pena de Tourinho Filho que também abrilhantou o quadro do
Ministério Público:
Preciso é, contudo,
haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão
“flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e...
quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que
pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente...
(Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1992, vol. 3, p. 361).
Com efeito, dos mais
tradicionais aos mais libertários, ou seja, de Tourinho a Gerado Prado[4], é
límpida a ideia da inviolabilidade do domicílio e da irregularidade da prisão
que violar este preceito. Pensar o contrário só se justifica em razão de um
apelo utilitarista que remonta Bentham, e se traduz na lógica de que “os fins justificam os meios”, o que
atenta contra o Estado Democrático de Direito e a Constituição da República de
1988.
O resultado é que o ingresso ilegal no domicílio
contaminou todas as provas do crime, não sobrando nada lícito para formar a
justa causa da ação penal. Não só a prova diretamente ilícita é
vedada pela Constituição, mas tudo que derivar da ilicitude será considerado
imprestável ao processo, é o que ficou definido na experiência estadunidense
como fruits of the poisonous tree
(frutos da árvore envenenada), que parte da comparação de que uma árvore
envenenada produz frutos envenenados, construindo-se então a teoria sobre as provas ilícitas por derivação, que
foi expressamente adotada no art. 157 do CPP.
Desta
forma, o encontro da motocicleta e das 11 gramas de cocaína foi ilícito e,
portanto, a oposição do acusado não foi a ato “legal” como preceitua o art. 329
do CP, contaminada, desta forma, a justa causa de todas as imputações.
Destarte,
não há outro caminho, senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do
CPP.
DISPOSITIVO
Isto
posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de A D DA S A relativamente aos crimes do art. 33 da Lei 11.343/06, art. 180 e 329, ambos
do CP, ex vi, art. 395, III C/C art.
396 ambos do CPP.
Expeça-se
alvará de soltura.
PRI.
Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 15 de setembro 2012.
ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito
[1] http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/artigos_2009/irene_04_09.pdf, consultado em 22/09/2012.
[2] DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[3]. Carnelutti, Francesco. Lecciones sobre el Proceso
Penal, 4 Tomos. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires:
Bosch, 1950, p. 78.